Mais ilusões?
Neste pano de fundo, é inquietante que os líderes dos partidos da esquerda que negoceiam com o PS a formação de um governo assumam que é possível governar nos próximos anos pondo entre parêntesis a interdependência dos vários níveis da criseJá aqui argumentei que não são possíveis políticas de esquerda dentro da zona euro. Hoje é a vez de Portugal tomar consciência dessa dura realidade: não há escolha democrática no seio da zona euro. Os seus membros abdicaram do exercício da soberania na política económica, o que significa que entregaram um amplo leque de decisões que organizam a vida social nas mãos de um colectivo de países. A ideologia do ordoliberalismo alemão foi consagrada nos tratados, ao mesmo tempo que o funcionamento e as nomeações da tecnoburocracia de Bruxelas e do BCE ficaram convenientemente amarrados à mesma ideologia. Não é pelo facto de esta perda de soberania ser designada por “partilha de soberania”, ou pelo facto de os media esconderem aos cidadãos que muito do que determina as nossas vidas se decide fora de Portugal, que a realidade deixa de ser o que é. A soberania reside no povo mas, dizem-nos hoje, o povo só pode eleger as maiorias que os tratados permitem.
A maioria do povo português ainda não terá consciência de que a democracia conquistada no dia 25 de Abril de 1974 ficou, no essencial, comprometida com a participação num processo de integração carregado de ambiguidades. Do mercado comum ao mercado único, deste à moeda única e, agora, o tesouro único, a UE consolida passo a passo um regime político híbrido que escapa ao controlo democrático dos cidadãos. Se o exercício da democracia pressupõe uma unidade territorial onde o povo elege os seus representantes e toma decisões sobre a vida da comunidade, então o caminho que a UE já tomou é tudo menos democrático. Onde está o povo europeu? Onde está essa comunidade de partilha de vida e de deliberação, o demos que detém o poder soberano? A verdade é que, na ausência de uma língua comum, largamente partilhada, a cidadania europeia não passa de um mito que serve a estratégia política de uma elite cosmopolita desligada dos seus povos.
A crise que estamos a viver tem diferentes níveis. É uma crise nacional, de que o impasse na constituição do novo governo constitui um importante sintoma, em articulação com a crise da UE, também ela participante da crise de um capitalismo que vai a caminho de mais uma explosão financeira, ela mesma fruto de um crescimento ambientalmente insustentável e ao serviço da ganância e do desvario de uma minoria. Tendo presente este pano de fundo, é profundamente inquietante que os líderes dos partidos da esquerda que hoje negoceiam com o PS a formação de um governo tenham assumido que é possível governar o país nos próximos anos pondo entre parêntesis a interdependência dos vários níveis da crise. Estando à vista de todos que a política orçamental expansionista está bloqueada pela escolha ideológica de fazer depender dos mercados financeiros o financiamento da dívida pública, e não dos bancos centrais; estando à vista de todos que uma nova política económica enfrenta a oposição determinada da Alemanha e seus satélites, que não aceitam outra visão do federalismo orçamental que não seja a do ordoliberalismo (ler Shahin Vallée, “How the Greek Deal Could Destroy the Euro”); estando à vista de todos que não há margem de manobra para qualquer política de relançamento da economia portuguesa, bem pelo contrário, como é possível que a esquerda continue a alimentar a expectativa de tornar mais suave o afundamento da sociedade portuguesa na desesperança?
Aos olhos de muitos, uma crise gerida pela esquerda será mais suportável do que uma crise gerida pela direita. A meu ver, tendo em conta o impasse em que a UE se encontra, um governo apoiado pelas esquerdas apenas será útil ao país se estas forem capazes de mostrar ao povo, no decurso desta experiência de governo, que o problema está mesmo no respeito pelos compromissos europeus. Se forem capazes de deixar cair a guerrilha verbal contra a direita e disserem, preto no branco, que sem soberania sobre a política económica não temos futuro. O país não precisa de mais ilusões.
Economista e co-autor do blogue
“Ladrões de Bicicletas”
Escreve quinzenalmente à sexta-feira
Nenhum comentário:
Postar um comentário