A 18 de Janeiro, uma das eurodeputadas portuguesas com mais tempo acumulado no Parlamento Europeu regressa a Portugal. Numa conversa descontraída com o i em Estrasburgo, apesar da “gravidade do que está a acontecer”, a deputada da CDU garantiu que a saída não é um baixar de braços a nível europeu, antes um retorno à vida política nacional e à “luta no terreno” que é a sua “esperança” para travar o “desmantelamento da democracia e dos direitos dos povos”. Este sábado Ilda Figueiredo está no Porto para lançar um livro de poesia, inédito no seu currículo. Sobre o futuro não se alarga, mas garante: “Ainda vão ouvir falar do meu trabalho.”
Começando pelo óbvio: porquê agora o adeus ao Parlamento Europeu?
Fui três vezes cabeça-de-lista da CDU aqui, não quero ser a eterna cabeça-de-lista ao Parlamento Europeu, as coisas têm o seu tempo. Tenho 12 anos e meio aqui, mais 12 anos na Assembleia da República e a esses pode juntar ainda cinco anos como vereadora na Câmara do Porto e mais sete como vereadora na de Gaia. São razões, creio, mais que suficientes para justificar o meu retorno à política nacional.
Então não é uma retirada da política?
Não.
Mas é a situação nacional que a faz regressar agora ou é mais uma sensação de dever cumprido aqui?
São as duas. Por um lado estas razões e o facto de, com a direcção do meu partido, termos conseguido encontrar uma substituta que, do meu ponto de vista, satisfaz plenamente a reconstituição da equipa para continuar este trabalho com o João Ferreira, que já cá está há dois anos e meio. [A Inês Zuber] é mulher, jovem, muito empenhada e é de Sociologia, portanto muito ligada às questões sociais. Agora nós estamos de facto a viver um momento muito complicado em Portugal e eu também quero ter um envolvimento maior na vida política portuguesa, com maior intervenção.
De que forma?
Fui recentemente eleita presidente do Conselho Português para a Paz e Cooperação, que faz parte do Conselho Mundial da Paz. Se não conhece vai ouvir falar [risos]. É um desafio ir trabalhar nessa área porque mantenho uma área de trabalho que tinha aqui, mas agora de uma forma mais intensa e dirigida a Portugal.
E tem outros planos para já?
Eu sou do Norte, com uma grande ligação aos problemas do Norte, portanto claro que vou, não digo que reformar todas as coisas – ainda não estou a dizer isso (risos) –, mas reforçar a minha actividade na área do Norte. Creio que também vai ouvir falar desse trabalho.
Abandona o PE com que sensação?
Com a sensação de que isto está cada vez pior. E de que está pior que quando vim para cá. Sei que isso não é nenhuma novidade. Hoje o Parlamento Europeu tem menos poder do que devia, em termos do Tratado de Lisboa.
Pelo prenúncio de mais poder executivo que estava previsto nele?
Foi dito e afirmado que o Parlamento ia reforçar muito os seus poderes com o tratado. É verdade do ponto de vista administrativo e burocrático, mas não do ponto de vista de decisão efectiva que tenha repercussões na vida das populações. Embora depois também tenha mais poder do que devia em alguns aspectos.
Em que sentido?
Parece que estou a ser contraditória, mas não estou. Infelizmente os poderes que tem, na maioria dos casos, são mal utilizados e vão muito mais ao encontro dos interesses das grandes potências do que dos interesses dos povos e dos trabalhadores mais atingidos por estas situações graves da crise do capitalismo que estamos a viver na União. E isso tem a ver também com a forma como [o PE] funciona, como é eleito e com a sua composição, porque só seis países aqui têm a maioria dos deputados e isso tem uma influência muito forte nas decisões. Nós tínhamos avisado que quanto mais centralizassem a maioria do PE piores seriam as consequências. E foram. O Parlamento hoje tem posições que se aproximam muito das do Conselho e da Comissão, é muito raro alguma coisa ser rejeitada aqui.
Refere-se à última eleição do PE?
Pode ter ficado aqui a sensação de que isto tem a ver apenas com o Tratado de Lisboa. Eu diria que o tratado centralizou mais a composição do PE nos grandes países, que têm posições políticas que coincidem em pontos centrais. A social-democracia e a direita coincidem nos grandes pontos centrais da UE e nas políticas neoliberais que levaram a esta situação.
A actual maioria do PP acentuou, mas já era algo que se antevia...
Sim, acentuou. E não falo apenas do poder político, mas do económico. Ontem [terça--feira] entrou em vigor o pacote da dita governação económica. Os seis diplomas que foram aqui aprovados são um atentado sério ao que ainda resta da soberania dos estados-membros e são sobretudo uma base fundamental para a aplicação das ditas políticas de austeridade, ou seja, de políticas neoliberais que se tornam, na prática, obrigatórias para todos os estados-membros na zona euro, numa dependência muito grande de Bruxelas – ou de Berlim, como quiser [risos]. Portugal é um exemplo disso, nós temos aquilo a que chamamos o pacto de agressão da troika, que sabemos que foi aprovado pelas três forças políticas centrais: PS, PSD e CDS. Ora naturalmente que isto dificulta a intervenção e a aprovação de alternativas.
Que tipo de alternativas?
Nós apresentámo-las, nós demonstrámos que é possível caminhar de outra forma, que é possível uma outra Europa, que é possível aprovar propostas que impeçam a continuidade deste afundamento da democracia e dos direitos sociais e laborais, do dito modelo social europeu, que nunca existiu.
Nunca existiu?
Existiram, enfim, princípios sociais importantes apregoados, mas que hoje, com estas políticas, estão a ser desmantelados, nuns países mais, noutros menos. Em Portugal com consequências gravíssimas, mas não só em Portugal. Crescem as tensões sociais e as contradições. E em cada cimeira eles dizem “Agora é que vai ser a resolução dos problemas da crise”, mas depois a cimeira passa, nesse dia fica tudo a olhar e no dia seguinte a crise continua e depois agrava-se. E estamos nisto até onde? Até quando?
O que pensa do resultado da cimeira da semana passada, concretamente da proposta da França e da Alemanha?
Ainda vai depender de muita coisa, até do texto que vão fazer. Há uns anos atrás, quando foi o Tratado de Lisboa, nós dizíamos “É possível fazer outra coisa” e eles diziam “Não, tem que ser isto, não há outra saída”. Passados dois anos da entrada em vigor do tratado eles próprios dizem “Há outra saída” e “É preciso fazer outro tratado” [risos]. De contradição em contradição vão caindo cada vez mais num processo preocupante. E olhe que até parece que me estou a rir disto mas não estou. Estou seriamente preocupada, porque quem vai pagar isto são os povos. Com a multiplicação dos problemas da recessão há cada vez mais desemprego e com isso cada vez mais exploração dos trabalhadores e assim se destrói tudo o que eram direitos que aqui aprovámos e pelos quais aqui lutámos.
Na sua opinião isso vai levar a quê?
A um agravamento das tensões sociais, só pode, e ao afundamento das economias dos países mais frágeis. E os mais ricos... Bom, aqui há uns meses num encontro com presidentes de institutos de economia na Alemanha disse-lhes: “A vossa economia baseada nas exportações depende dos mercados. Se os destroem com as vossas políticas, a quem é que vão vender? Não vão ter condições e a curto ou médio prazo também vão sofrer as consequências do que estão a fazer aos outros países”. E alguns disseram “Pois é, temos de diminuir a pressão”, mas veja, disseram “diminuir” e não “acabar” com a pressão. Isto podia ter sido diferente se tivessem sido tomadas medidas logo no início da crise.
Que tipo de medidas?
Se se tivessem regulado os mercados financeiros – em vez de os desregular cada vez mais –, se tivessem acabado com os paraísos fiscais, restringido ou acabado com o mercado de derivados, e sobretudo, dado outras funções ao Banco Central Europeu, pondo-o naturalmente a financiar os estados e não a intervir nos mercados secundários para comprar dívida soberana, o que garante que o sector financeiro continua com ganhos de 600% ou 700%. Tudo isto poderia ainda ter sido diferente se, além disso, dessem ao BCE não a estabilidade dos preços, mas sim o emprego e o combate às desigualdades sociais. Aí tudo tinha sido diferente e o que estou a dizer não é nenhuma loucura, eu estou dentro do próprio sistema a defender isto.
Porque é que acha que essas medidas não foram tomadas?
Porquê? Porque esta [opção] é mais fácil para os grupos económicos e financeiros, alemães, franceses, etc.
Daí as propostas de revisões constitucionais, de monitorização europeia...?
É controlar tudo e mais alguma coisa. Eu não só estou contra as decisões do último conselho, como acho que são graves, não têm em conta nada do que se está a passar e não resolvem nenhum problema, agravam as relações na própria UE com isto de ir fazendo um tratado ao lado. E ao tentar impor nas constituições limites inadmissíveis, em vez de termos este programa de agressão por três anos vamos tê-lo por 20. Por 20 anos não, indefinidamente! Isto é o afundamento de economias sem solução à vista. E os povos vão ficar impassíveis, quietos e calados perante um processo destes?
Acha que vão?
Eu não creio. Num processo destes não há democracia. Portugal, de acordo com as conclusões do tratado, fica com menos poderes perante a UE que a Assembleia Regional da Madeira tem hoje perante a Assembleia da República, por exemplo. E o povo português aceita isto?
O que pensa desta afinação da governação económica europeia?
Eles agora podem dar poderes à Comissão para chamar a si a elaboração de um Orçamento do Estado antes de ele ser votado no parlamento nacional! Então para que é que temos eleições legislativas para a Assembleia da República? O Orçamento do Estado é o documento central económico e social de um país, acho que hoje em Portugal isso já se entendeu. Ora se isso pode ser alocado a Bruxelas – ou a Berlim – e eles é que vão dizer qual tem de ser o nosso Orçamento... Isto nem a Junta de Freguesia de Freixo de Espada à Cinta! Ao menos ela ainda tem direito a fazer o próprio orçamento...
Já repetiu que não há solução à vista. Está assim tão pessimista?
Com estes responsáveis, com estas políticas e neste quadro que eles acabam de decidir, não há solução.
Quando fala em responsáveis refere-se aos chefes de Estado?
Falo deste Conselho e naturalmente meto--os no mesmo saco, porque a senhora Merkel vai lá e o senhor Sarkozy vai lá e os outros aceitam. E a Comissão a mesma coisa. E a maioria do Parlamento também. Aliás, este congresso do Conselho é uma grande bofetada no PE, eles vieram aí ontem dizer que vão incluir o Parlamento no processo... Como assim? Isto é feito à margem do PE! É um processo profundamente antidemocrático e pretendem fazer isto à margem do tratado para fugir aos referendos, mas ninguém garante que isso vá ser assim. Por exemplo, não está claro que a Irlanda não tenha mesmo de fazer o referendo do processo e não está claro que nos outros países os povos não venham a exigir aos seus governos que façam referendos.
Também em Portugal?
Em Portugal estamos em dívida há 20 anos. O Tratado de Maastricht esteve na base disto tudo, foi o que criou a união económica e monetária, e nós nessa altura pedíamos um referendo. E até hoje ainda não se fez. Pode ser encontrada uma solução se os povos intensificarem as suas lutas e obrigarem a que o processo pare e mude de caminho. E é aí também que reside a minha esperança.
E é também por isso que regressa a Portugal em Janeiro?
Eu não penso que isto seja uma luta para um dia ou para dias. É uma luta complexa.
Mas o regresso é um baixar de braços a nível europeu?
Não é um baixar de braços porque terei cá quem me vai substituir e quem vai continuar esse trabalho, com a minha ajuda por trás, se for necessário. É um pouco dizer que a luta fundamental se vai fazer no terreno. E eu quero estar nessa luta.
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