sábado, 1 de março de 2014

"Ou se desvaloriza a moeda,ou se desvalorizam salários. Não há milagres" ( Octávio Teixeira, entrevista ao jornal i)

O ex-líder parlamentar pensa que este pode ser o último mandato de Jerónimo de Sousa na liderança do Partido Comunista
O economista Octávio Teixeira foi líder parlamentar do PCP anos a fio. Depois abandonou a política activa e voltou ao Banco de Portugal, o seu lugar de origem. É um defensor claro e frontal da saída de Portugal do euro e admite que os partidos de esquerda não são claros e frontais porque temem dizer aos trabalhadores que os salários reais serão reduzidos durante uns tempos. Mas acredita que não existe alternativa na configuração europeia: a chamada competitividade externa ou se faz baixando salários ou desvalorizando moeda. “Não há milagres.”

Disse há dois dias que é possível que, por razões eleitoralistas, o governo tente sair do programa da troika em “voo livre”, é a sua expressão. Mas a saída à irlandesa, na sua opinião, vai agravar ainda mais os problemas da dívida e da austeridade. Um programa cautelar é melhor que “um voo livre”?
Convém fazer uma clarificação acerca do meu pensamento sobre a matéria. Nem a saída sem pára-quedas nem a saída cautelar resolvem qualquer problema do país em termos de futuro próximo ou mais longínquo. Agora, dentro da óptica que o governo tem estado a seguir, é evidente que o mais prudente seria o recurso ao programa cautelar. Por uma razão central: o nível das taxas de juro. Com um programa cautelar, em princípio, as taxas de juro serão inferiores àquelas que o governo conseguirá obter indo directamente aos mercados financeiros.
Portanto a saída limpa é arriscada?
Dentro da perspectiva do próprio governo, a prudência aconselharia a que assinassem um programa cautelar. Agora um programa cautelar depende também da vontade da União Europeia. E não é muito certo que pelo menos alguns países da União Europeia estejam interessados num programa cautelar… Alguns deles terão de se confrontar ou com os seus parlamentos ou com os seus tribunais constitucionais para avançar nesta matéria. É eleitoralista esta visão do governo de pretender aproveitar as próximas eleições e as seguintes para aparecer junto da população portuguesa a dizer “a troika terminou, estamos livres”…
Mas a troika nunca terminará, na sua opinião?
O problema é que a troika nunca terminará e mais do que isso: a política de austeridade – e aí Passos Coelho tem sido muito claro – é para continuar. Entretanto, com vista às próximas eleições e às legislativas, o governo fez esta coisa de aproveitar para ir aos mercados internacionais para emitir dívida a taxas de juros na ordem dos 6% – 5,1% foi o mínimo que conseguiu – para poder sobreviver durante um ano e ter ali o seu saco para não ser necessário ir aos mercados.
Defende o perdão parcial da dívida, mas temos em Portugal uma situação em que os dois maiores partidos continuam a dizer que a dívida é para pagar. E como seria possível negociar isso com os nossos parceiros europeus? Estamos numa situação quase sem saída…
Sem saída por causa da falta de vontade política, designadamente dos partidos que referiu. Eu, pessoalmente, não tenho a mínima dúvida – e isso é demonstrável técnica e economicamente – que a dívida actual é impagável. É absolutamente impagável na sua totalidade. O próprio Fundo Monetário Internacional, no relatório português sobre a 8.a e a 9.a avaliações, diz que para que em 2038 Portugal possa ter uma dívida de 60% do PIB – o limite que a União Europeia diz que é sustentável – precisaríamos de ter taxas de crescimento económico durante estes 20 e tal anos da ordem dos 1,8% em termos reais. E 1,8% significa o dobro do que tivemos nos últimos seis anos antes da crise internacional. Era necessário que as taxas de juro que temos de pagar andassem na ordem dos 3,4% e que o défice primário fosse 3,8% durante estes 20 e tal anos. 3,8%, a números actuais, significa aumentar a dose que já existe acumulada de austeridade. Isto é insustentável e impossível. O problema não se põe em querer ou não querer pagar. É possível pagar ou não? Não é possível pagar! Se não é possível pagar, temos de renegociar. É um problema de vontade política dos partidos que estão no governo, ou que é previsível que possam ascender ao governo. Seria errado seguir o exemplo da Grécia, que não tomou a iniciativa – impuseram--lhe a renegociação. Aquilo não resolveu nada porque a renegociação foi feita com base na perspectiva do interesse dos credores.
E como é que se sai daqui? Porque é que na sua opinião seria melhor para Portugal a saída do euro?
Aquilo que se designa crise da zona euro não é uma crise decorrente das dívidas soberanas. É uma crise decorrente da heterogeneidade dos países que formam a zona euro, que vieram ao longo dos anos a acumular desvios cada vez maiores de uns países em relação aos outros. Em vez de ter passado a existir aquilo que se prometia, que era a coesão económica dos países, o que houve foi uma divergência. A moeda única foi aplicada a países com estruturas económicas completamente diferenciadas, com necessidades mediatas e imediatas completamente diferentes, com níveis de produtividade diferenciados uns dos outros, e que não podiam, objectivamente, sobreviver simultaneamente com a mesma moeda. A moeda única foi um garrote que se abateu sobre os países menos desenvolvidos que estão na zona euro, porque os impediu de crescerem mais rapidamente que os outros países para atingirem a convergência, ou a coesão económica. Desde logo, dentro da zona euro, quando desapareceu o risco cambial, isso favoreceu os países que tinham especializações produtivas mais elevadas e mais sofisticadas e conduziu, designadamente, a que a industrialização se concentrasse nos países do centro, em particular na Alemanha, assistindo-se à desindustrialização dos países da periferia. Fora da zona euro, e fora da União Europeia, a própria evolução da moeda única em termos cambiais – aquilo que se pode designar euro forte ou euro caro – provocou uma perda de competitividade enorme nos países mais frágeis, nos países do Sul. A nossa capacidade de exportação está assente fundamentalmente em produtos em que há uma enorme concorrência em termos de preços. O euro tem--se mantido, com alguns picos ainda superiores, na ordem de 1,30 e qualquer coisa em relação ao dólar. Ora os países exteriores à União Europeia – Índia, China, do Norte de África, da América do Sul e Central, que têm a sua paridade correlacionada com o dólar – viram a sua competitividade aumentar substancialmente. E Portugal foi muito prejudicado em termos de exportações. E há outro aspecto que é pouco referido: aquele processo de deslocalização de empresas que começou em Portugal há uns anos também foi desencadeado pelo euro caro. Há quem diga que é preciso arranjar condições para que o euro desvalorize. Não é provável por duas razões: segundo estudos de várias fontes internacionais, a chamada taxa de equilíbrio entre o euro e dólar, para a Alemanha, é precisamente a de 1,30. E a Alemanha é a economia central da União Europeia e isso tem de ser tida em conta. Por outro lado, o euro tem no seu ADN a perspectiva de ser um euro forte, uma moeda cara, exactamente para embaratecer as aplicações financeiras da União Europeia nos países exteriores à União Europeia. Combater estes dois interesses é difícil.
Há economistas em vários partidos de esquerda que defendem a saída do euro, mas não existe nenhum partido que faça disso uma bandeira. Não existe medo de que no dia seguinte à saída do euro as pessoas vejam as suas dívidas cavalgar, o dinheiro que têm no banco reduzido a metade? Não há um medo na sociedade portuguesa das consequências do dia seguinte?
Estas eleições para o Parlamento Europeu são importantes nesta perspectiva. Tem de se clarificar e esclarecer as situações. É evidente que a saída do euro tem custos. Mas há duas coisas: os custos são a muito curto prazo. Veja-se a Islândia há dois ou três anos. A Islândia fez uma desvalorização brutal, superior a 50%. Teve uma inflação de 12%. Mas passado ano e meio, dois anos, além do crescimento económico que teve, a inflação veio para os 4%. A alternativa que nos é apresentada, a desvalorização interna, tem estes inconvenientes. O programa que está a ser aplicado pela troika e pelo governo é formalmente conhecido como desvalorização interna. A recuperação do escudo, da soberania monetária, teria como consequência uma desvalorização, mas os efeitos são a muito curto prazo e nas exportações, passados seis meses, teríamos efeitos claros. E na redução de importações – com a substituição de importações pelo consumo de produtos nacionais. A inflação – já fiz cálculos sobre isso, admitindo uma desvalorização de 30% – nunca iria além dos 10%. Saímos do euro, recriamos o escudo e imediatamente determina-se que um escudo tem o mesmo valor que um euro. Todas as contas são transformadas de euros para escudos com o mesmo valor. E a seguir desvalorizamos o escudo. A perda para as pessoas na prática não existe.
Mas as pessoas têm 10 mil euros de PPR no banco que passam a valer muito menos.
Transformam-se em 500 mil escudos. Mas o escudo vale menos. Mas quando desvaloriza também os activos passam a valer menos. No dia 1 posso comprar uma casa por 500 mil euros. No dia 2, com os 500 mil escudos desvalorizados, posso continuar a comprar essa casa porque o valor patrimonial da casa em escudos também baixou. Mas há uma situação que não quero esconder. É evidente que a saída do euro tem custos: o problema bancário. Aí é que está o problema. Não propriamente em relação às famílias, mas em relação aos bancos. A desvalorização, por causa do endividamento externo dos bancos, vem criar problemas. Mas nós temos vindo a suportar esses problemas bancários. Com a saída do euro, a parte essencial do sistema bancário tem de ser preservada, logicamente. Não é uma coisa nova, com a vantagem de que num prazo relativamente curto a situação fica resolvida do ponto de vista económico e, naturalmente, do ponto de vista financeiro.
É militante do PCP, foi líder parlamentar. O PCP sempre foi contra a entrada no euro…
Sim, sim.
Mas não se vê claramente nem no PCP nem no Bloco de Esquerda – estou a falar de dois partidos que estão no grupo da esquerda europeia – a defesa dessa tese. O próprio Alexis Tsipras, que é o candidato do PCP e do Bloco de Esquerda a presidente da Comissão Europeia, não fala em sair do euro.
Exactamente. Julgo que há algumas perspectivas a ter em atenção. Uma questão que se apresenta a vários partidos é o receio de dizerem aos trabalhadores “vocês em termos reais vão ter os vossos salários reduzidos devido à inflação”, embora aqui possa haver compensações. Julgo que haverá em vários partidos essa ideia de terem de dizer “nós defendemos a saída do euro, mas isso vai ter implicações nos salários reais durante algum tempo”. Por outro lado, e isso eu colocaria relativamente ao Bloco de Esquerda, que referiu, há a ideia de que o problema se resolve fazendo uma reconfiguração da zona euro e até uma reconfiguração da União Europeia. Agora a questão que eu levanto é esta: o que é mais viável ou mais possível? Fazer uma reconfiguração total da zona euro, dizendo “vamos mudar para uma política que tenha como prioridade a estabilidade de preços”? Passa a haver uma política do Banco Central Europeu que tenha como prioridade o emprego e o crescimento económico? Quem é que aceita isto? Qual é o país que aceita isto?
A correlação de forças, que é uma expressão muito querida dos comunistas, não é favorável a isso…
Não vejo essa possibilidade, pelo menos a médio prazo. Certamente, como comunista, nunca desistirei de defender uma reconfiguração completa da União Europeia em termos de políticas viradas para a população. Agora isso não é de esperar que possa vir a suceder a médio prazo. E o médio prazo aqui é longo. Se ficarmos nessa perspectiva, ao fim desse médio prazo longo, o país já não estará cá. A questão da saída do euro parece-me fundamental.
Mas não é debatida em Portugal, designadamente a nível dos partidos políticos.
Tem havido debates, mas não são debates públicos, como deviam ser.
A Assembleia da República não debate isto…
Exactamente. Acho que estas próximas eleições para o Parlamento Europeu têm uma importância política muito grande. Estas questões têm de ser debatidas na campanha eleitoral, mas com muita seriedade e muita objectividade. Para que as pessoas fiquem esclarecidas acerca das alternativas que estão em causa, das consequências de cada uma das alternativas e do que, em termos de curto prazo, médio prazo e longo prazo, é preferível para os portugueses. Neste aspecto estas eleições são muito importantes e podiam ser aproveitadas para isso.
Mas estamos a três meses e só se fala de cautelar ou saída limpa.
O debate está enviesado nessa perspectiva.
O PS defende menos austeridade, mas apoiou o Tratado Orçamental. Acha que Seguro corre o risco de fazer a mesma figura que Hollande se for eleito primeiro-ministro?
É quase inevitável, com base naquilo que tem sido o discurso do Partido Socialista e do seu secretário-geral. Aquilo que o Partido Socialista nos tem dito é que é preciso menos austeridade e mais crescimento. Posso estar enganado, mas até hoje ainda não ouvi o Partido Socialista dizer como faz isso. Nos últimos dias tem estado em debate os membros da troika dizerem que é preciso reduzir ainda mais os salários. E toda a gente dá saltos! Não pode ser, nem pensar nisso! Eu também acho que não se deve pensar nisso. Mas a questão que se põe é esta: como é que se consegue a chamada competitividade externa se não é através da desvalorização da moeda? Não há milagres! Tem de ser através da desvalorização dos salários!
Portanto, quando o governo, o PS, os patrões, dizem que não querem baixar os salários estão-nos a aldrabar?
Estão a aldrabar porque sem isso, dentro da óptica da troika que eles subscrevem, não conseguem a desvalorização interna! Há estudos internacionais que dizem que, relativamente a Portugal, a desvalorização interna tem de se prolongar por 20 a 30 anos. Eu sou conhecido por ser uma pessoa delicada, suave. Mas sobre a aprovação do Tratado Orçamental não posso deixar de dizer que é uma estupidez completa!
Mas tem a maioria da Europa a defender isso.
Principalmente os países do centro, para não dizer a Alemanha…
Em Espanha o socialista Zapatero meteu-o na Constituição e aqui o PS aprovou uma lei com valor reforçado….
É uma estupidez. O tal défice estrutural com o máximo de 0,5% implica uma dose de austeridade muito superior àquela que tem vindo a ser praticada! É contrário àquilo de que um país como Portugal necessita, o de crescer mais rapidamente que os outros países da zona euro, para se aproximar. Não é possível sair deste ciclo vicioso com o tratado orçamental. Chamam-lhe a regra de ouro. Podiam perguntar a um professor de Finanças, que por acaso é Presidente da República, se ele conhece essa regra de ouro das finanças públicas. E ele certamente dirá que não. A regra de ouro que existe internacionalmente nas finanças públicas é a regra que diz que, em princípio, a não ser em casos de recessão, o défice não deve ser superior à despesa em investimento.
Por acaso esse professor de Finanças foi contra a inscrição dessa regra na Constituição…
Apesar de tudo ainda teve lá um toque de professor de Finanças (risos).
Mas estamos então a ter um debate público esquizofrénico….
O debate público está a passar ao lado das questões centrais e essenciais.
Mas a direita, ao menos, está a ser coerente.
Exactamente.
Mas porque é que a esquerda está enfiada num colete-de-forças?
Do meu ponto de vista, não deveria estar. Deveria tomar a iniciativa de um debate sobre estas questões e de ter as suas próprias propostas para que toda a gente soubesse o que está em jogo. O Partido Socialista está muito ligado àquilo que é central e essencial nesta política do governo, o Tratado Orçamental, sair do euro nem pensar… O PS está muito amarrado às teses dominantes na União Europeia. Há pouco perguntava-me se Seguro, se for eleito primeiro-ministro, poderá ser um novo Hollande… Não tenho a mínima dúvida sobre isso. Se o Hollande francês recuou em toda a linha, o Seguro português não irá fazer qualquer alteração. A França ainda tem algum peso na União Europeia e Portugal não tem peso absolutamente nenhum…
Estamos aqui na Europa a viver uma grave crise. No entanto, um país pobre como a Letónia acabou de aderir ao euro e a Ucrânia partiu-se toda porque uma parte da população quer um acordo com a União Europeia. Como é que vê estes paradoxos?
Não conheço a situação da Letónia, mas admito que tenha sido uma situação idêntica àquela que conduziu Portugal ao euro – entrar no clube dos ricos. Vítor Constâncio dizia, na altura, que a partir do momento em que entrássemos na zona euro deixaríamos de ter problemas de financiamento da nossa dívida externa. Está-se a ver, não? Em relação à questão da Ucrânia, julgo que a situação é diferente. Por um lado, há uma parte da população da Ucrânia que nunca, nunca suportou os russos. Não estou a falar da União Soviética, são os russos! A outra questão é que o problema da Ucrânia não tem sido apenas uma questão interna. Eu até admito – não quero ser peremptório – que o peso maior daquilo que se tem passado na Ucrânia tenha a ver com o exterior, um problema geoestratégico. Quer os Estados Unidos da América, quer a União Europeia, há muito vêm pressionando a Ucrânia para entrar para a União Europeia e para a NATO, para enfraquecer o poder da Rússia naquela zona. Não estou aqui a dizer que a Rússia é melhor ou pior que os Estados Unidos e a União Europeia, mas é evidente que a Rússia continua a ser uma potência mundial e pretende continuar a defender os seus interesses geoestratégicos. A minha dúvida é onde isto vai parar. A Rússia vai submeter-se a ter um adversário, num sítio onde existem ódios profundos em relação aos russos, à sua porta? Isto pode ter consequências muito graves que se vão repercutir na União Europeia… Se existir um confronto claro e evidente entre a Rússia, a Europa e os Estados Unidos e isso chegar à via armada, é imprevisível.
Foi líder parlamentar do PCP, teve posições importantes no seu partido. Depois voltou para o Banco de Portugal e entretanto reformou-se. Não tem saudades da política activa?
Não [risos]. A política activa cansa muito [risos]. Vou participando dentro e fora do partido em vários debates. Mas também é essencial que se vá fazendo a renovação das gerações na política activa. Os menos jovens devem dar lugar aos mais jovens.
O PCP tem feito isso.
As pessoas que compõem o grupo parlamentar do PCP neste momento, no meu tempo não existiam [risos]. Ou eram muito jovens… O Partido Comunista faz muito bem em rejuvenescer.
E então acha que este vai ser o último mandato de Jerónimo de Sousa, aliás seu amigo e padrinho de casamento?
Não sei, mas admito que sim. Não tenho informação nem sequer pessoal. Somos amigos há dezenas de anos. Mas creio que ele próprio certamente tem em conta a necessidade de vir rejuvenescendo o partido a todos os níveis.
Poderá ser este o último mandato de Jerónimo de Sousa como secretário-
-geral do PCP? 
Poderá ser...


 

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