sábado, 28 de fevereiro de 2015

As trombetas do poder ( José Pacheco Pereira)



O "jornalismo" económico em Portugal caracteriza-se por não ser jornalismo.
 Há alguns jornalistas económicos que não merecem aspas? Há sem dúvidas,
mas são a excepção da excepção. E eles são os primeiros a saber que o são e
como são verdadeiras as afirmaçõeque aqui faço. Até porque fazer jornalismo
na imprensa económica é das coisas mais difíceis nos dias de hoje. Fica-se
sem "fontes", sem a simpatia dos donos e dos anunciantes e pode-se ficar sem
 emprego.

 A maioria que escreve na imprensa "económica" fá-lo entre páginas e
páginas feitas por agências de comunicação, artigos enviados por auditoras
e escritórios de advogados, fugas "positivas" de membros do Governo.
Quase tudo é pago nessa imprensa, mas esse pagamento não é o salário normal do jornalismo, mas o seu "modelo de negócio", "vender comunicação"
como se fosse jornalismo. É pago por empresas, associações de interesse,
 agências de comunicação e marketing, por sua vez empregues por quem tem muito dinheiro para as pagar.

 O público é servido por "informação" que não é informação, mas
publicidade e comunicação profissionalizada de agências, dos prémios de
"excelência" disto e daquilo, destinados a adornar a publicidade
empresarial, páginas encomendadas por diferentes associações,
grupos de interesse e lóbis, nem sempre claramente identificados,
anuários sem que só se pode estar se se pagar, organização de eventos
 que parecem colóquios ou debates, mas não são.

 Um cidadão que não conheça estes meandros pensa que o prémio é
 competitivo e dado por um júri isento, que as páginas especializadas são
feitas pelos jornalistas e que quem é objecto de notícia é-o pelo seu mérito e
 não porque uma agência de comunicação "colocou" lá a notícia, que
 um anuário é suposto ter todos os profissionais ou as empresas de um
sector e não apenas as que pagam para lá estar, e que um debate é para
ser a sério, ter contraditório e exprimir opiniões não para a propaganda
governamental ou empresarial. O acesso ao pódio nesses debates é
cuidadosamente escolhido para não haver surpresas, e os participantes
 pagam caro para serem vistos onde se tem de ser visto, num exercício de
 frotteurisme da família das filias.

 As trombetas do poder (2)

 Um dos usos que o poder faz deste tipo de imprensa é a "fuga" punitiva.
Dito de outro modo, se o Governo tiver um problema com os médicos,
ou com os professores, ou com os magistrados, ou com os militares, aparece
sempre um relatório, ou uma "informação" de que os médicos não
trabalham e ganham muito, que os professores são a mais e não sabem
 nada, que os magistrados são comodistas, e atrasam os processos por
negligência, e que os militares são um sorvedouro de dinheiro e gostam de
 gadgets caros. E há sempre um barbeiro gratuito para o pessoal da
 Carris, ou uma mulher de trabalhador do Metro que viaja de graça,
em vésperas de uma greve.

 As trombetas do poder (3)

 A luta contra a corrupção, seja governamental, seja empresarial, a
 denúncia de "más práticas", os excessos salariais de administradores e
gestores, a transumância entre entidades reguladoras e advocacia ligada
 à regulação, entre profissionais de auditoras e bancos que auditavam e
vice-versa, o embuste de tantos lugares regiamente pagos para
 "controlar", "supervisionar", verificar a "governance" ou a
"compliance", para "comissões de remunerações", a miríade de lugares
 para gente de estrita confiança do poder, que depois se verifica que não controlam coisa nenhuma, nada disto tem um papel central na imprensa económica.
A maioria dos grandes escândalos envolvendo o poder económico foram
denunciados pela imprensa generalista e não pela imprensa económica,
que é suposto conhecer os meandros dos negócios. A sua dependência
dos grandes anunciadores em publicidade, as empresas do PSI-20 por
exemplo, faz com que não haja por regra verdadeiro escrutínio do que se
passa.

 As trombetas do poder (4) 

Esta imprensa auto-intitula-se "económica", mas verifica-se que reduz a
"economia" às empresas e muitas vezes as empresas aos empresários e
gestores mais conhecidos. Os trabalhadores, ou "colaboradores", é
como se não existissem. Um exemplo típico é Zeinal Bava, cuja imagem
foi cultivada com todo o cuidado pela imprensa económica Agora que Bava
caiu do seu pedestal, como devemos interpretar as loas, os prémios,
doutoramentos honoris causa, "gestor do ano", etc., etc.? A questão
coloca-se porque muita da análise aos seus comportamentos como quadro
máximo da PT é feita para um passado próximo, em que teriam sido
cometidos os erros mais graves. Onde estava a imprensa económica? A
 louvar Zeinal Bava, como Ricardo Salgado, como Granadeiro, como Jardim
Gonçalves, como… Até ao dia em que caíram e aí vai pedrada. 

 As trombetas do poder (5) 

Dito tudo isto... ...a imprensa económica é uma das poucas boas novidades
na imprensa em crise nas últimas décadas. Eu, em matéria de comunicação
 social, sou sempre a favor de que mais vale que haja do que não haja,
 por muitas objecções que tenha ao que "há". Eu não gosto em geral do
 modo como se colou ao discurso do poder, servindo-lhe de trombeta, e
 isso pode vir a ser um problema, até porque esse discurso está em perda e
 os tempos de luxo para o "economês" já estão no passado.
 
O facto de ter havido um ascenso da imprensa económica ao mesmo tempo
que estalava a sucessão de crises, da crise bancária à crise das
dívidas soberanas, impregnou-a do discurso da moda, encheu-a de
epetidores e propagandistas, colou-a ainda mais aos interesses
económicos. Abandonou a perspectiva política, social, cultural,
sem a qual a economia é apenas a legitimação pseudocientífica da
 política do poder e dos poderosos. Vai conhecer agora um período de
penúria, em particular de influência, e pode ser que isso leve a
um esforço introspectivo sobre aquilo que se chamou nos últimos a
nos, "danos colaterais", agora que caminha também para essa
"colateralidade".

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