sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Dona Refundação, Anabela Fino ( in Avante)

Dona refundação

Em época de caça, Passos Coelho tirou da cartola uma lebre, cuja baptizou com o sugestivo nome de «refundação», e convidou o PS a partilhar o lauto repasto que a mesma promete proporcionar. Desde esse momento de ilusionismo, apimentado qb pelo mistério quanto à forma de cozinhar a peça, que quase se pode ouvir o frémito de excitação que percorre o PS. Entre a aparente perplexidade face ao convite e a indisfarçável satisfação por ser chamado à mesa do poder, o PS faz-se rogado, exige explicações, mas não fecha a porta ao convite. Enquanto isso, e como é hábito em casos que tais, correm rios de tinta pelo País a propósito da «refundação», mais ou menos elevada à condição de «dama misteriosa», como se Passos Coelho não a tivesse exposto desde a sua apresentação à sociedade com toda a crueza da sua nudez apenas coberta pelo manto diáfano da demagogia.
Mas afinal do que se trata? Nem mais nem menos do que «rever a despesa, nomeadamente a despesa social» para que o País possa «regressar normalmente ao mercado de financiamento da dívida, sem pedir um segundo resgate». Trata-se, continuando a citar Passos Coelho, de «saber em que medida é que isso exige rever funções do Estado, a maneira como o Estado presta serviços aos cidadãos». É esta alegada necessidade de rever as funções do Estado que exige a presença do PS, já que se trata de uma reforma «mais ampla» do que estaria inicialmente previsto. Ou seja, numa palavra, trata-se de rever a Constituição. E porquê? Porque as imposições constantes do Memorando da troika assinado por PS, PSD e CDS não encontram cobertura no texto constitucional. Embora mutilada em sucessivas alterações, a lei fundamental do País continua a ser um obstáculo aos ditames do grande capital, esses ditames que impõem a reserva de milhares de milhões de euros para o resgate da banca mas que não reservam um cêntimo para o resgate dos trabalhadores e do povo que a pretexto das medidas de «austeridade» ficam sem trabalho, sem casa, sem comida, sem direito à saúde ou à educação, sem direito à velhice, sem direito a uma vida digna. Porque, embora adulterada, a Constituição consagra como direitos fundamentais o que as troikas querem eliminar – direitos, liberdades e garantias que ainda são um travão legal às pretensões de domínio absoluto do poder do capital. Porque, quanto mais não seja do ponto de vista formal, a Constituição ainda é garante do regime democrático.
É isto que o PSD quer «refundar». É para dar a estocada final no que sobra dos valores de Abril na Constituição que o PS é chamado a participar.
Não vale a pena procurar nos dicionários o significado de «refundação». Como não vale a pena alimentar esperanças quanto à posição que o PS virá a assumir. A resposta está na política que há mais de três décadas tem sido seguida pelos governos da alternância e que conduziram os trabalhadores, o povo e o País à situação em que hoje se encontra. O que é preciso não é que PSD e PS nos «refundem». O que é preciso é que os trabalhadores e o povo «refundam» os interesses que esses partidos servem da única forma que há para os «refundir»: lançando-os no caixote do lixo da história e reescrevendo a história pelas suas próprias mãos.

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